[ENTREVISTA] ESC Portugal à conversa com Henrique Feist (Parte I)

ESC Portugal: Olá Henrique! Muito obrigado pela disponibilidade para esta entrevista. Vamos então conversar um pouco sobre a tua carreira e a tua participação no Festival da Canção deste ano e tenho que começar por uma perspectiva um pouco pessoal, e que imagino que seja partilhada por alguns dos nossos leitores, que é a minha própria memória enquanto telespectador: uma das primeiras imagens que tenho, desde sempre, é de ti e do teu irmão, vestidos de anjos, a cantar num programa de televisão…

Henrique Feist (HF): Seria o programa do Jesus Christ Superstar?

ESC Portugal: Sinceramente, não sei, não é uma memória muito precisa, - eu teria para aí quatro anos… mas a imagem é realmente de vocês os dois vestidos de anjos, a cantar.

HF: Nós fizemos o Jesus Christ Superstar e usávamos umas túnicas, para aí em 84 ou 85…

ESC Portugal: Deve ter sido isso, então. Vocês tiveram a percepção, na altura, de que para aquela geração vocês eram um fenómeno de popularidade? À medida daqueles tempos, naturalmente.

HF: Olha, tivemos a sorte de sermos os primeiros a aparecer, no fundo, a fazer aquilo. Porque só muito mais tarde é que vieram os Onda Choc, os Ministars, os Queijinhos Frescos… Ainda hoje muitos confundem-nos com os Queijinhos Frescos, mas não, nós somos anteriores a eles. Portanto, nós tivemos a sorte de não haver outros miúdos que fizessem aquilo que nós fazíamos na altura. Nós tínhamos até um caminho difícil nessa altura porque os vinis que gravávamos era tudo pop, mas se fores ver, os lados B quase sempre eram canções de musical, porque nós tínhamos sempre aquela coisa de cantar em inglês.

ESC Portugal: O que tem a ver com o a vossa formação e com o próprio percurso familiar?

HF: Exacto. O Nuno e eu, nesses anos – 82, 83, 84… - éramos convidados para fazer galas, à noite, por causa do repertório dos musicais que nós tínhamos, que não era comum. As canções pop eram mais para as festas de verão, mas o que fazíamos mais era as galas, como as do S. Luís, para a Associação Portuguesa contra o Cancro, por exemplo, porque o nosso repertório de musical enquadrava-se muito bem.

ESC Portugal: Isso num tempo em que, mesmo interpretado por adultos, o musical praticamente não existia em Portugal.

HF: Não, pois não, não havia. Estamos a falar de uma época em que se estava a assistir à morte da revista, e o próprio musical estava estagnado. Só muito mais tarde é que vem o Filipe [La Féria] com o What happened to Madalena Iglésias e com o Passa por mim no Rossio.

ESC Portugal: Dos discos que gravaste nessa altura ainda tenho um, - corrige-me se estiver enganado, mas acho que eras tu, - que era o do Carlitos…

HF: Era, era eu. E sabes que conheci o Axel nessa altura, andei com o Axel ao colo! Porque o Axel, que é fillho do Fernando [Correia Marques], nessa altura teria cinco, seis anos, quando eu ia cantar com o Fernando em alguns espectáculos, às vezes, vinha para o palco cantar comigo. Tenho um carinho muito grande pelo Axel porque o conheço desde miúdo, desde essa altura.

ESC Portugal: Pouco depois vocês participam no Festival da Canção, em 1985, com a canção Meia de Conversa. Esse é um Festival marcante por várias razões. Desde logo pelos nomes que participaram, como a Adelaide Ferreira, que acaba por ganhar, os Delfins…

HF: A Alexandra, o Jorge Fernando…

ESC Portugal: Entra a Wanda Stuart…

HF: Exacto, com os Aguarela. O Luís Filipe, também.

ESC Portugal: E foi particularmente marcante para ti, sobretudo a nível físico, porque ao que julgo saber estavas a actuar cheio de dores.

HF: Como é que sabes isso!? Mas é verdade. Umas semanas antes do Festival eu já me andava a queixar, com uma dor na zona do apêndice e prendia-me o andar. E quatro dias antes já não aguentava as dores e fui de urgência para o hospital, tinha uma apendicite aguda e tinha que ser operado. E lembro-me que antes de ser anestesiado dizia ao médico: ó doutor, não me deixe morrer que ainda tenho o Festival! Era puto, claro. E isto é que ninguém sabe, fui amarrado à cama, quando acordei da anestesia, porque o pensamento com que eu adormeci foi: tenho que ir para o Festival! E quando acordei estava exactamente com esse pensamento e queria era levantar-me e ir para o Festival. Tiveram que me amarrar à cama por causa dos pontos. Obviamente acabei por ir para o Festival com pontos na barriga, quatro dias depois da operação, e fui com uma cinta elástica, para prender os pontos, porque eu tinha que dançar um bocado no número e havia o medo que os pontos rebentassem. Mas o que me estava a dar dores era a cinta, que me apertava todo. Aliás há uma altura, se vires com atenção, na parte do instrumental, em que tinha que dançar e estava todo inclinadao, ai sim, é que estava cheio de dores. Foi uma aventura!

ESC Portugal: E que memórias é que tens dessa experiência?

HF: Aquele foi um Festival muito estranho. Para já porque sensivelmente uma semana antes disseram-nos que tinham descoberto que nós, por causa da nossa idade, não poderíamos actuar na televisão sueca (caso viéssemos a ganhar), depois das nove da noite. E portanto ainda se pôs a questão se participávamos no Festival, ou não. Depois veio um comunicado da televisão sueca a dizer que regra não se aplicava, uma vez que tínhamos o consentimento dos pais. E lembro-me que eu senti que nós estávamos entre os favoritos para ganhar, nesse ano e estávamos com aquele entusiasmo todo. E depois acabou por ganhar a Adelaide, que curiosamente tinha ficado em segundo no ano anterior, atrás da Maria Guinot, - que foi um ano muito chato porque qualquer uma das canções também era muito boa. A que ficou em segundo lugar, ainda hoje, continuo sem saber porquê, porque a canção não ficou na memória das pessoas. Ainda hoje as pessoas falam é na da Adelaide, falam da nossa, por causa do dom leão, e falam no Umbadá. Acabaram por ser essas três que marcaram, e a que ficou em segundo lugar, que era da Eduarda… ninguém se lembra. Esse é o tal totoloto do Festival da Canção que, ainda hoje, acho que é um bocado assim.

ESC Portugal: Poucos anos depois tu e o Nuno vão para Londres estudar e essa é uma experiência decisiva na vossa vida. A vossa vivência cultural e familiar marcaram significativamente as vossas escolhas profissionais. Consegues imaginar-te a fazer outra coisa que não seja cantar e teatro?

HF: Não. Não, porque acho que é o expoente máximo a que pode chegar um artista. O Nuno e eu tivemos a parte pop, enquanto Nuno e Henrique, e depois quando fomos para Londres, e mesmo cá, a parte do teatro musical e percebemos que aquilo que nos desafiava mais era que… aquilo que é preciso dar ao público num registo pop é mais imediato, mais descartável, enquanto que aquilo que precisas de dar ao publico em teatro musical é muito mais exigente. No teatro musical estás a contar uma história, tens que ser em parte actor, porque a canção advém de uma história que está a ser contada, e tudo isso desafia-te não só como cantor, mas como actor e mesmo como bailarino, quando é preciso. Tens que ser um actor na canção, não apenas um cantor, não basta estar afinado e ter boa voz, tens que pensar na letra, perceber porque é que o personagem que estás a fazer naquela altura está a cantar aquilo e comunicares isso ao público de forma credível. E isso entusiasmou-me muito mais do que o lado descartável do pop, apaixonei-me por isso.

ESC Portugal: O teatro musical tem tido um crescimento notável nos últimos anos. Sentes que já se ultrapassou, em Portugal, o estigma em relação ao género do musical, a comparação com a revista, uma certa desconfiança por o musical não ter grande tradição entre nós?

HF: O que eu sinto é que as pessoas em Portugal vivem muito no presente e não percebem que o nosso presente nunca pode existir sem o nosso passado. Se nós formos analisar o passado do teatro em Portugal vemos que existiu, de facto, teatro musical em Portugal. Tivemos a revista mas, ao mesmo tempo, tínhamos teatro musical, tivemos A Invasão, tivemos O Colete Encarnado. Havia teatro musical e havia operetas em Portugal. E havia a revista. A opereta e o teatro musical foram morrendo, porque também morreram os compositores. A revista foi continuando mas depois, inevitavelmente, também morreram os compositores e os autores de revista. E a revista hoje não existe. Tenho respeito por quem a faz, mas acho que não existe. Se eu pedir a alguém para trautear uma cancão de revista dos anos 70 para a frente, ninguém trauteia, mas ainda hoje as pessoas conhecem o Cheira a Lisboa, as Giestas, o Lisboa não sejas francesa, que é d'A Invasão, as pessoas ainda cantam isto tudo. Mas são todas canções dos anos 40, 50 e 60. As canções feitas a partir daí, e até aos dias de hoje, não ficaram. Portanto acho que quando olhamos para o presente temos que perceber de onde é que ele veio. Há que ter em conta que o teatro musical sempre existiu, mas que foi decaindo, e que o teatro musical não é nada mais manos do que teatro comercial. Sempre foi, em qualquer parte do mundo. Não é teatro experimental, não é teatro para as elites, é uma forma de teatro comercial, porque vive do público, vive da receita da bilheteira, vive de patrocínios, vive de empresários que consigam investir dinheiro, porque as companhias de teatro musical são grandes, há a orquestra, os cenários têm que ser muito bons e variados, é uma coisa cara. E o cinema é que veio mostrar ao público como o teatro musical é dirigido às massas, com filmes como o Moulin Rouge, o Chicago, o Dreamgirls. E não é à toa que esses filmes acabam por passar pelos Óscares. Isso não acontecia desde os anos sessenta. Se fores ver a história dos Óscares nos anos 30, 40 e por aí fora, havia sempre musicais nomeados. Depois houve um período em que deixaram de aparecer, até que por volta de 2000 voltam os musicais a entrar nos Óscares. E isso teve impacto mesmo em Portugal. Se formos ver os castings dos concursos de televisão, muitos dos concorrentes agarram, por exemplo na canção da Beyoncé, o Listen, do Dreamgirls, um musical, lá está. As pessoas começaram a despertar para o musical, a perceber que o musical também é bom.

ESC Portugal: E é nesse renascer do teatro musical que tu regressas a Portugal?

HF: Eu voltei antes, voltei em 93. O Filipe [La Féria] tinha vindo do sucesso com o Passa por mim no Rossio, abre o Politeama com a Maldita Cocaína e é nesse instante que eu volto para Portugal. Eu faço parte do elenco da Maldita Cocaína e o Nuno [Feist] faz a musica toda. Depois, em 97 o João Lourenço faz o Sweeney Todd, no Teatro Aberto, o João Pereira Bastos faz outro musical do Gershwin (Of Thee I Sing), o Filipe faz o Amália e, portanto, começa a nascer uma nova onda de produções de musical. E depois entre 2008 e 2010 tens um momento muito rico em musicais, porque o João Lourenço faz uma reposição do Sweeney Todd no Teatro Aberto, o Diogo Infante faz o Cabaret, a Fernanda Lapa faz A Maquina de Somar e, portanto, voltamos a ter um despontar de musicais, o que é muito bom. Até porque há uma coisa que é preciso dizer: temos muito talento em Portugal, - e isso vê-se pelos programas de televisão, onde se ouvem vozes extraordinárias, - e ainda bem que há mais pessoas a apostar nos musicais, porque estas pessoas têm que ter sitio para onde ir, que não seja lá fora. Normalmente sonha-se com uma carreira lá fora porque há a noção de que em Portugal não se vai a lado nenhum.

ESC Portugal: Entretanto, em 2007, voltas a concorrer ao Festival da Canção, com a Vanessa, e com uma canção do teu irmão, Além do Sonho. Fala-nos um pouco, também, das memórias que tens desse ano.

HF: Olha, as memórias são aquele entusiasmo de ir ao Festival da Canção. O que mais me entusiasma no Festival é o facto de poder representar o meu país, poder levar o nome de Portugal lá fora. Eu não vou nunca para o Festival da Canção com a ideia de ter um outro rumo para a minha carreira, de poder vir a assinar um contrato discográfico, não é isso que me cativa. Quando o Nuno me convidou, em 2007, para participar com a Vanessa, foi com esse entusiasmo que eu fui. Só a ideia de poder representar Portugal lá fora… acho que qualquer artista gostaria de ter essa possibilidade! Então fui, e cantar com a Vanessa foi óptimo, porque gosto muito da Vanessa, e o projecto que o Nuno tinha, de levar uma canção étnica, com a guitarra portuguesa e tudo, obviamente que me cativou, e depois tenho a maior confiança no meu irmão e naquilo que ele escreve. E além disso ouve o entusiasmo todo de encontrar uma série de colegas, cantores e produtores, que conheço bem, como o Luís Jardim, o Fernando Martins, a Teresa Radamanto, o Emanuel, e todo o bom ambiente que isso gerou.

ESC Portugal: Nos temas que o Nuno tem escrito para o Festival, e embora tenham sempre algumas das características que são esperadas numa música para o concurso, há também uma marca constante do musical.

HF: Há, de facto há. Se formos ver a canção de 95 (Travo Doce), se formos ver o Além do sonho, se formos ver o Outro lado da vida e a Alvorada, que é quase a mesma linguagem, e se formos ver a canção que ele compôs este ano, são todas muito diferentes. Mas a componente de teatro musical que elas têm é aquilo que elas exigem de um cantor. Não são canções lineares, não são fáceis de cantar. Isso dá para perceber na Alvorada, por exemplo. E o que essas canções têm em comum é essa componente do musical, o facto de puxarem o intérprete ao máximo. O que não deixa de ser uma característica exigida por muitas das baladas pop, hoje em dia. E quanto a mim, a linguagem do musical que o Nuno tem e que acaba por ser mais visível nas canções é ao nível das orquestrações. A esse nível para mim, - e posso ser suspeito, porque é o meu irmão, - o Nuno é imbatível, porque tem uma roupagem de musical… Se te lembras do ano passado, uma das coisas que mais se comentava acerca da Alvorada era a orquestração e a ligação do clássico, os violinos, na primeira parte da canção, e depois, na segunda parte a guitarra eléctrica, em que a canção explodia. É aí que acho que o Nuno é imbatível, porque encontra essas soluções. E não são fáceis.

ESC Portugal: E nesse sentido a canção deste ano, Quase a voar, assenta-te como uma luva…

HF: Sim, porque entusiasma-me muito cantá-la!

ESC Portugal: Foi uma canção escrita a pensar em ti e também no Festival?

HF: Sim, acho que foi as duas coisas. Porque as duas coisas podem ser pensadas simultaneamente. Ou seja, não faria sentido, por exemplo, ter um cantor de ópera, e fazer uma canção de ópera a pensar nele, e esquecer que a canção é para o Festival. Quando o Nuno me convidou falámos sobre o estilo de música com que gostaríamos de concorrer e uma das coisas que discutimos, precisamente, foi que não iríamos levar uma balada este ano, porque senão iam acusá-lo outra vez de ser um baladeiro. Quisemos provar às pessoas que ele não sabe apenas fazer baladas, pop estava fora de questão, e decidimos puxar por uma coisa étnica, uma coisa bem portuguesa, mas ao mesmo tempo indo buscar sons de leste entre outros, para picar o olho a esses países, também. Até porque toda a gente sabe que a Eurovisão tem uma componente política, os países vizinhos votam entre si, sempre, não há nada a fazer! Tomando isso como certo, vamos entrar nesse jogo, sem perder a sonoridade portuguesa da canção, que está lá na mesma, mas piscando o olho a esses países. E o Nuno conseguiu realmente fazer isso. E depois fez uma orquestração que me entusiasma, porque mistura uma guitarra portuguesa com o acordeão e, depois com violinos… lá esta, como cantor, e como conheço o crescendo que a canção depois tem, é entusiasmante por a canção cresce e… só poderia ser aquilo! Quando ouves a canção e percebes por onde aquilo vai, melodicamente, percebes que tudo faz sentido, tudo assenta no seu lugar, e isso ajuda imenso à interpretação.

ESC Portugal: É então quase um voo pelas referências musicais da Europa? Eu noto que foram buscar influências que passam, por exemplo, pela tradição musical judaica, que depois integra a própria tradição musical da Rússia ou da Grécia…

HF: É, é verdade. Tem partes das escalas hebraicas e depois tem os ritmos do leste europeu. E tem na mesma o cariz português da guitarra, até porque nós temos também o fado menor, e o fado menor é um apelo também a essa escala hebraica. Se começares a ouvir só os instrumentos, sem a voz, há muito pontos em comum com Portugal. Afinal nós fomos invadidos pelos mouros, e tivemos grandes comunidades judaicas durante muito tempo. Todas essas tradições nós temos também, e o que fizemos foi aproveitar o que havia em comum entre as várias culturas, entre nós todos, para, no fundo, mostrar que todas as culturas cabem em Portugal.

ESC Portugal: Provavelmente vão querer manter alguma surpresa, mas é possível saber algo sobre o que estão a pensar apresentar em palco?

HF: Olha, há sempre aquela tentação, para quem como eu vem do teatro musical, de encenar a canção. A única vez que eu fiz isso foi com o Nuno e a Fábia, quando eles levaram o Não demores, e que decidimos levar os secadores e dar um ar Grease àquilo. E quer as pessoas tenham gostado, ou não, da canção, o que é certo é que ainda hoje falam da canção dos secadores, porque marcou, que era o que eu queria. Quando foi com a Vanessa, que também fui eu que encenei, optamos por uma abordagem mais simples, less is more. Este ano vamos seguir nessa linha, não vamos complicar, e então vai estar o Nuno em palco comigo – e o Nuno não vai estar ao piano! – e vamos ter mais quatro pessoas em palco.

(continua)

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